Encontro com Boss

Revista Daseinsanalyse Nº 1 1976

Apresentação


Encontramos Medard Boss em abril de 1974. Familiarizados com sua obra, a expectativa de vê-lo e conversar com ele encheu-nos de alegria. Ele ainda, nessa altura, um importante nome que, embora perto e presente nas suas reflexões, que compartilhávamos daqui, era distante como todo grande nome. Num instante, nos sentimos próximos de uma pessoa que, cheia de entusiasmo, falava da vida. Ficamos impressionados com o esforço de Boss para falar em português o tempo todo. Com dificuldade, é certo, mas escolhendo e julgando com exatidão nossas eventuais tentativas de ajudá-lo a explicitar seu pensamento quando a palavra lhe faltava.

Havíamos selecionado questões referentes a pontos mais obscuros, levantados em nossas discussões. Lidas no início do nosso papo, serviram como um roteiro, um caminho para que Boss percebesse onde se centralizavam nossas dificuldades e encaminhasse sua palestra, embora volta e meia ele derivasse para pontos que mais o encantavam.


Gravamos todo o encontro, claro que não sem eventuais problemas do gravador e o ruído externo. A transcrição das fitas – que constam dos arquivos da Associação Brasileira de Daseinsanalyse (ABD) – foi difícil, mas tentamos facilitar e clarear certas passagens a fim de torná-las compreensíveis e fiéis ao sentido original.


Associação Brasileira de Análise e Terapia Existencial - Daseinsanalyse
  A.B.A.T.E.D.
Março de 1976


O que é a Análise do Dasein? Em português, temos apenas um termo para a Análise do Dasein; em alemão, há dois: Dasein Analysis e Dasein Analytik. Formulado por Heidegger, o termo Dasein Analytik abrange todos os referenciais da análise e todos os caracteres da existência humana. Trata-se de uma ontologia, e não de uma psicologia ou antropologia. Primeiramente, não podemos esquecer que a primeira e única pergunta essencial que Heidegger tencionou resolver foi a questão: “O que é o ser, o ser todo, geral; o que quer dizer ser? O que significa que alguma coisa é, ou que não é nada?”.


A pergunta “o que significa ser?” não se refere a um ser especial. Esta mesa é. Mas o que quer dizer que ela significa algo? Ela é. Pode ser que nada seja, mas, nesse sentido, ser não significa nada. Podemos dizer: nada é; se diz nada é. Porém, aí, o nada já é compreendido como um ente: o nada, aí, é o ente.


O ser geral nunca é um ente. Este ser é mais um acontecimento, um aparecimento, um processo de aparecer que e deve ser entendido num sentido verbal. A este ser geral, a esta questão, Heidegger chama Ontologia Fundamental. Seu livro Ser e tempo é uma ontologia que aproxima a resposta à questão: “Que significa quando dizemos que alguma coisa é?”.


Na filosofia anterior, temos muitas respostas, entretanto a mais conhecida é a que diz que o ser é uma concepção tão vaga que a questão não pode ser respondida. Ao contrário, Heidegger diz que a compreensão deste do ser é a mais fundamental – e que dele todos os entes concretos estão derivados.


No mesmo livro, analisa, por exemplo, a espacialidade do ser humano, a afinação e a temporalidade, e todas estas diferentes análises constituem a Dasein Analytik. Tudo o que Heidegger escreve, no entanto, é ontologia – e não somente uma filosofia da existência humana. Sempre trata da questão do ser. Em Ser e tempo, ele procura a resposta para a questão do ser, e, por duas razões, começa pela pesquisa da existência humana. A primeira razão está no fato de que o homem é o único ente que se faz a pergunta: “que significa ser?”; a segunda, no fato de que o existir humano tem uma relação especial com o ser.


A primeira razão é compreensível, pois sabemos que nem o coelho nem a mesa fazem esta pergunta: O que é ser? A segunda razão, aquela da relação especial do homem com o ser, é que a existência humana tem de servir como alcance de abertura, na qual os entes podem aparecer – a clareira. É essencial ver a existência humana como clareira, como abertura, constituindo-se da compreensão da presença do que se encontra. O ser do ente foi assim entendido pelos antigos gregos. Ser é: pré-sente. O ‘pré’ indica ‘antes’, não unicamente no sentido de anterioridade, mas também no de apresentar à compreensão do homem. Por isto, o homem e todos os entes não humanos formam uma unidade inseparável; nenhuma coisa pode ser sem uma adequada compreensão.


Sem o entendimento do homem não se pode dizer que uma coisa é, que, por exemplo, uma mesa é. A palavra é não tem nenhuma significação se não há o entendimento de mesa como mesa. Não tem sentido discutir se algo é ou não é. O é não tem sentido sem a presença do homem, pois é somente ao entendimento do homem que algo pode ser apresentado, pode aparecer.


Aqui, naturalmente, entra a questão dos cientistas. Por exemplo, esta colina acha-se aí há milhões de anos, antes do homem aparecer (há relógios atômicos que podem provar sua idade), mas é sempre apenas ao homem que ela pode dizer que tem essa idade. Sem o homem não se pode dizer o que significa esta montanha ter uma idade de dois ou três milhões de anos. É preciso entender que tudo o que dizemos sempre se relaciona ao entendimento do homem. O entendimento das coisas – de como são na sua complexidade, na riqueza de significações –, esta possibilidade de entender constitui a essência da existência humana.


O que é mais difícil de entender é o salto do pensamento, isto é, deixar para atrás todas as concepções que veem o homem como um ente presente num determinado lugar do mundo – mundo entendido como um espaço vazio. O homem, como essencial, não está presente num determinado lugar do vazio, não é um objeto, mas um entendimento não substancial e não coisificado.


É preciso fazer esse salto para a compreensão da existência humana como entendimento estendido através de todo o alcance do que chamamos mundo. Esta abertura, que chamamos mundo, que se estende até o mais longínquo objeto que percebemos, este entendimento não é, a priori, encerrado na epiderme do corpo. Este corpo somente é alguma coisa desse entendimento, pertence a esse entendimento. O entendimento estendido é essencial, pois possibilita a abertura na qual as coisas podem ser apresentadas, mostradas e ser.


Os povos da Índia nunca viram o homem como os modernos, em primeiro lugar, como um corpo, como um organismo, por exemplo, sentado junto a uma mesa. Para o homem moderno, a maior dificuldade é afastar-se das concepções “coisificadas”. Sartre permanece nesta concepção e diz que o corpo é a primeira coisa que É, é o meu corpo, sentado junto a esta mesa, em frente desta colina e é deste ponto do corpo que saem os referenciais, os entendimentos que captam os objetos anteriormente sem sentido. Ele diz que é o homem que junta e joga sentido aos objetos. Esta é a concepção de Sartre. Apesar de usar o termo “Dasein”, formulado por Heidegger, Sartre dá a esta expressão um conteúdo contrário, no sentido de Descartes. (Nisto, os franceses não saíram do cartesiano.). Ele ainda se encontra no mais pronunciado cartesianismo, partindo da concepção da res cogitans, do subjetivo. Naquela res cogitans, os objetos entram primeiramente sem sentido, o qual só posteriormente o homem lhes dá.


Por isso, a visão da Dasein Analytik significa uma revirada de 180 graus. Também por isso, não é possível ver essas concepções como mais uma teoria que pode ser anexada às outras, como, por exemplo, à teoria psicanalítica. A diferença essencial é que esta visão de Heidegger não é uma teoria psicológica, mas uma visão filosófica que deixa todas as psicologias e psicopatologias atrás de si. O mais importante é que a Dasein Analytik liberta-se da concepção de que o homem existe como uma psique. Não que a destrua, nem chega a concebê-la. Esta “psique” tem sido compreendida como uma consciência, uma esfera de consciência originária separada do mundo dos entes.


Desta separação inicial e artificial, originou-se a necessidade de uma teoria do conhecimento. Só depois de se ter feito esta separação e vendo-se o homem como uma psique, um ente consciente, existindo por si e primeiramente separado dos entes, é que foi possível questionar: “Como os objetos entram na esfera da consciência?”; “Como esta esfera transcende junto aos objetivos para captar os entes?”.


Esta famosa questão do conhecimento não pode ser resolvida. Contudo, se não começamos com esse preconceito da relação do homem com o mundo, a questão da teoria do conhecimento não surge. Começamos com a vista: o que podemos ver a cada momento que existimos, como entendimento já estendido, preenche todo o alcance do que chamamos mundo. O entendimento, desde o início, está junto das coisas. Comparo esse fato com a luz física que preenche o alcance, o espaço e, desde já, as coisas ficam iluminadas. Porém, não é a luz que faz as coisas.


De vez em quando, a crítica que se faz à Dasein Analytik é que o “Dasein” seria um idealismo alemão que diz que todas as coisas existem só na ideia do homem, sendo produto da mente, da res cogitans. Essa é uma crítica sem sentido, pois a Dasein Analytik só vê como é a luz –, que não faz as coisas, mas permite que estas apareçam, que sejam vistas.


Uma vez que a existência humana é vista com tal entendimento, nem surge o problema da teoria do conhecimento. Essa visão também é diferente de todas as psicologias que partem da concepção de uma psique. É essencial notar que a psique não pode ser vista nem calculada e provada cientificamente. Para fazermos qualquer pesquisa científica é preciso, somente, que existamos como abertura na qual uma coisa pode aparecer. Antes do aparecimento de uma coisa, não podemos fazer ciência. Antes de uma coisa aparecer – e nós a entendermos como tal –, é preciso ver que existimos como entendimento.


Não há sentido em procurar uma prova científica para essa visão filosófico-ontológica. Uma concepção ontológica não pode ser provada cientificamente, nem um fato científico pode provar a verdade de uma visão ontológica. Ao contrário, cada percepção de uma coisa, cada prova científica pressupõe uma visão ontológica. Por exemplo, a teoria psicanalítica pressupõe a visão ontológica de Descartes, isto é, a visão de uma psique, uma res cogitans, e de objetos fora dessa res cogitans. Como nas ciências naturais, também pressupõe naturais que tudo o que existe realmente é calculável. Estas são as palavras de Descartes recentemente repetidas pelo físico Max Plank.


É importante saber que não é possível provar esse pressuposto, essa crença filosófica na qual se baseiam todas as pesquisas científicas. Os cientistas pretendem somente se preocupar com as coisas empíricas – como nada tendo a ver com a Filosofia. Esquecem, sempre, que também se baseiam numa filosofia – justamente esta, que pressupõe existir verdadeiramente somente o mensurável.


A visão filosófico-ontológica da Dasein Analytik é contrária a esta visão. No entendimento da existência humana, da Dasein Analytik, sendo o ser humano uma abertura, não seria possível que alguém o visse como um aparelho e se aproximasse dele, também fisicamente, se ele já não estivesse aqui como entendimento e, também, como alcance de entendimento.


A Dasein Analytik é antes um novo método do que um sistema filosófico contendo uma massa de fatos ou de prescrições. A palavra método vem do grego meta-odos (odos significa caminho; meta, além), isto é: um caminho conduzindo além de. Trata-se um novo caminho do entendimento humano para atingir as coisas do mundo, e não um conjunto de conhecimentos já feitos. Não é um sistema filosófico, mas uma escola para aprendermos a abrir os olhos, a ver de novo o nosso existir simplesmente como ele se mostra – se possível, sem preconceitos. Durante três ou mais séculos, fomos treinados a aceitar como preceito, a existência de uma psique encapsulada e de um mundo separado, e ficamos satisfeitos com essa concepção. Por isso é tão difícil sair desse caminho. É preciso muito tempo e um exercício contínuo até conseguirmos o salto para o novo entendimento, mas num certo momento, como um ‘clic’, tudo se torna mais fácil.


Lembro-me que para isso, há muito tempo, tive que de realizar um enorme trabalho intelectual, pois ainda estava preso à teoria freudiana, na qual fui treinado. O que critico em Freud é apenas a sua teoria secundária, sua metapsicologia. Os fatos, no tratamento com seus pacientes, contradizem sua própria teoria. Essa contradição entre os seus artigos teóricos e os seus artigos sobre os conselhos práticos aparece muito no seu livro que trata dos conselhos para a prática psicoterápica – por exemplo, na expressão que a psicoterapia serve para liberar e tornar o homem um ser mais livre. A expressão “ser livre” não pode existir na sua teoria científico-natural, que é um determinismo completo não havendo lugar nenhum para a liberdade. Entretanto, na prática, a terapia psicanalítica pode ser entendida com base na Dasein Analytik.


Freud, mesmo, não obedeceu à sua própria teoria. Ao dizer que o terapeuta deve aceitar tudo o que ouve do paciente, assim como se mostra, ele dá um conselho fundamental, mas muito infiel, à sua direção primordial teórica, que pressupõe que a realidade de tudo que sai do paciente, todo o psicológico é primordialmente de caráter instintivo, e o que aparece não instintivo é derivado deste. Como poderia se dar essa transformação de todo psicológico aparentemente não instintivo em instintos e como essa ideia chegou a ser uma filosofia ou até uma crença religiosa? Essa transformação é incompreensível.


Toda a Metapsicologia de Freud, baseada nos preconceitos cartesianos, repercute negativamente sobre a prática psicoterápica. Por exemplo: repercute, de modo muito prejudicial, na interpretação dos sonhos e, especialmente, na relação entre terapeuta e paciente, a assim chamada transferência. No sentido original de Freud, os sentimentos entre o paciente e o terapeuta seriam só uma coisa transferida e as emoções não pertenceriam ao terapeuta, mas às imagens intrapsíquicas dos pais do paciente. O que o paciente sente, as reações dirigidas ao terapeuta seriam uma falsificação, uma ilusão e não verdadeiras.


O tratamento da transferência de Freud, baseado nessa teoria, é que o terapeuta deve explicar ao paciente que esta sua relação é uma falsificação, um erro que tem de ser retificado. Tratar a transferência desse modo torna o paciente ainda mais inseguro, pois o que mais estima, o que é mais precioso e mais autêntico de sua existência no momento, é declarado errôneo. Tenho visto muitos pacientes que, assim tratados, tornam-se tão inseguros que cometem suicídio. Isto é apenas um exemplo de como a falsa psicologia pode repercutir de modo desastroso na prática.


Toda a teoria dos sonhos de Freud é um artefato completo, todo trabalho chamado elaboração manifesta e latente, o método de deslocamento ou condensação, de associação livre de pensamentos e imagens, chamados processos secundários, não são nada mais que invenções baseadas em nenhum fato. Apenas foram necessárias, somente porque Freud precisou delas para poder aplicar sua teoria às teorias científico-naturais. Também nesse caso, Freud tornou-se muito infiel às próprias descobertas, pois ele começa seu livro sobre os sonhos afirmando que seria capaz de mostrar que cada sonho é uma formação psíquica plena de sentido na história de vida de cada pessoa.


Tal concepção de sentido não tem lugar nas ciências naturais, nas quais só entram cadeias de causas e efeitos. Contudo, mesmo os físicos atuais de alto nível dizem que as cadeias causais não têm sentido, que só registram sequências temporais regulares que acontecem até hoje, mas que ninguém sabe se terão continuidade no futuro.


Com relação ao homem, apenas se pode falar em cadeias de motivos. O motivo pressupõe que alguém, em primeiro lugar, tenha entendido uma coisa como tal e que a qualidade desta coisa o motive a fazer alguma coisa dela. Um exemplo para distinguir a compreensão do comportamento humano das coisas nas ciências naturais: uma janela foi fechada pelo vento e, neste caso, não é preciso que o vento compreenda a janela como uma coisa que possa ser fechada, o vento nada sabe da janela. Por outro lado, posso fechar a mesma janela se eu, dentro do meu quarto, escrevo um livro, e as crianças lá fora fazem um barulho terrível que me perturba. Nesse caso, eu, como homem, tenho um motivo para fechar a janela, diferente do vento, que é um acontecimento da natureza. O motivo é o barulho das crianças, mas para que este seja um motivo é preciso que eu perceba o barulho como algo que me perturba. Uma ação humana é sempre motivada, e cada ação motivada pressupõe o entendimento de uma coisa como tal. É muito anticientífico confundir, como se faz sempre, motivo e causa natural.


Ao contrário do começo de seu próprio trabalho nos livros sobre os sonhos, Freud procura tornar as ações humanas, o modo de existir do sonho, em cadeias de efeitos causais. Devido a esta infidelidade consigo mesmo precisou de uma teoria onírica que transforma os motivos, as ações motivadas no sonho, em cadeias de efeito e causa. Também como nas ciências naturais, procurou uma causa fundamental para todos os sonhos, pressupondo finalmente tê-la encontrado num desejo infantil.


Um motivo não fica num compartimento inconsciente, pois, se não existe uma psique, como uma coisa ou como uma cápsula, não pode conter compartimentos. O que Freud visou com a pressuposição de um inconsciente é o que não está tematicamente percebido no mundo, isto é, a presença não temática.


É muito importante saber que há várias maneiras de presença de uma coisa. Há a presença sensorial, quando, por exemplo, percebemos sensorialmente esta mesa. Outra maneira seria quando vocês estavam em São Paulo nesta manhã, e esta casa estava com vocês, como entendimento estendido através de todo este alcance do mundo, como uma presença presentificada. Esta casa não estava dentro da psique, dentro das suas cabeças, mas estava aqui, pois, se não fosse o caso, vocês nunca seriam capazes de achá-la.


Há ainda a presença sonhada das coisas sonhadas, o nosso modo de existir como sonhadores. As coisas estão presentes nos sonhos de modo sensorial. Depois, quando acordamos, as coisas sonhadas continuam presentes, mas como presenças sonhadas.


Podemos, também, ter presenças imaginadas. Podemos imaginar uma montanha de ouro que não existe como presença percebida sensorialmente, mas que também está no nosso mundo, e não no vazio, pois imaginamos esta montanha numa planície.


Falamos, ainda, de presenças periféricas e temáticas. Quando, por exemplo, sentados aqui nesta cadeira nos dirigimos para aquela velha árvore, sua presença temática fica junto a nós como entendimento. Porém, ao mesmo tempo, percebemos a presença periférica, por exemplo, desta cadeira, sem a qual cairíamos – pois, se não fosse presente, não poderia nos suportar.


Perceber tematicamente é dar-se conta abertamente do que acontece ou pode acontecer em volta. Quando o homem não gosta do que acontece, pode de algum modo se distrair e, com esforço, enxergar uma outra coisa para que não se dê abertamente conta do que acontece. Mas isto não significa que haja um compartimento inconsciente no qual são depositadas todas as coisas das quais não gostamos.


O problema do inconsciente é a formulação feita por Freud, que é errada por ser “psicologizada”. Porém o fundamento do conceito, desta formação psicologista, não é nada má se entendermos o existir humano como clareira, como entendimento, se entendermos a nós mesmos. Nenhuma clareira pode existir sem obscuridade, elas condicionam-se mutuamente. Só há clareira partindo-se de uma obscuridade, mas não como compartimento de uma psique, e sim como aquela da qual surge todo o mundo, o entendimento humano e todos os entes. Esta obscuridade permite que dela surja tudo o que existe, tudo o que é.


É por isso que na Dasein Analytik de Heidegger, o ser, em si mesmo, é chamado nada; não um nada niilista, mas muito mais no sentido da antiga concepção Budista do Nirvana –, como um nada pleno de possibilidade de permitir surgir o que é. Este ser não é um ente, uma coisa, mas a possibilidade de surgir dos entes, por isso só entendido num sentido verbal. O inconsciente freudiano é um derivado cartesiano, uma sombra longínqua dessa concepção de obscuridade.


Nós, como existência humana, temos a tarefa de arrancar desta obscuridade o alcance iluminado desta clareira que é o nosso mundo. Isto é muito valioso na Dasein Analytik. Vendo-se assim, a nós mesmos e a todo o mundo, compreendemos um novo sentido do existir humano, o de cumprir a tarefa de servirmos como guardiães para manter aberta esta clareira a fim de que ela possa aparecer e se desenvolver.


Esta é a tarefa geral do homem e, em particular, do psicoterapeuta. Este não faz nada mais do que ajudar os pacientes a se desenvolverem no sentido das próprias possibilidades de sua existência. Se o homem pode se desenvolver neste sentido, também pode permitir que se desenvolva tudo o que lhe aparece até o seu modo mais pleno. Quando é possível o cumprimento dessa tarefa, a existência humana é, em si mesma, afinada na felicidade.


Nas diferentes épocas da história do mundo, houve mudanças no que se dizia em relação aos entes. Os gregos já percebiam tudo o que é, os fatos primordiais, como fenômenos – termo derivado de phenesthai, que significa o que se mostra do escondido. Na época medieval, todos os entes foram percebidos, na sua essência fundamental, como criaturas feitas para Deus. Para os modernos, tudo o que é, que nós percebemos, são objetos.


Há objetos só há alguns séculos, depois que Descartes concebeu o homem como sujeito, como res cogitans e como a única coisa primordial. Neste sentido, a concepção de objeto sempre precisa de uma anterior, de sujeito, de uma percepção contra a qual ele é lançado. Descartes entronou o homem como a única coisa que é sujeito (“sub” quer dizer estar no fundo de tudo; sujeitar é derivado de “subjazere”, que significa embaixo de tudo) – e o fundamental é que tudo depende deste homem. A essência primordial da concepção moderna do fundamento dos entes é a apresentação para o homem. Entretanto há apresentação de todas as coisas unicamente enquanto aparecem ao homem. Assim, todas as concepções psicológicas da Análise do Dasein podem se basear nessa relação de entendimento.


Todos os processos psicológicos acontecem primeiramente dentro da psique. Freud falou dos mecanismos, das coisas intrapsíquicas anteriores, como conteúdos e afetos, e das relações de afetos e imagens acontecendo a priori dentro da psique. Mas ninguém jamais viu estas coisas intrapsíquicas.


Por isso o novo método é o de partir sempre para entender todos os fenômenos psicológicos, apesar de que, a rigor, não seria mais permitido e possível falar de coisas psicológicas desde que não existe uma psique. Fala-se de uma causa psicológica, mas ninguém sabe determinar o que significa, nesta relação, a palavra “psicológica”.


O que é uma causa psíquica e o que é uma causa não psíquica? Em primeiro lugar, todas as pesquisas psicológicas ou psicopatológicas têm que se basear sobre o fenômeno primordial do existir do homem, isto sempre é a relação da concepção humana com a coisa percebida. Esta relação do ser humano com os entes que lhe aparecem na clareira deve sempre ser entendida a partir deste fenômeno primordial: das coisas que estão aparecendo e do entendimento humano.


Na psicopatologia é preciso apenas descrever, fazer uma descrição tão exata, tão estritamente adequada ao fenômeno quanto possível: descrever todas as variações, as deficiências no modo de cumprir as possibilidades de relacionamento com as coisas.


Nos casos simples da Psicologia, p.ex. de um lesionado cerebral ou no caso de um paralítico sifilítico, sempre há uma falta no relacionamento e entendimento das coisas em todos os seus significados. Cada entendimento inclui em si mesmo a possibilidade da distorção do entendimento, e cada distorção do entendimento pressupõe o entender.


Neste sentido, a Daseinsanalyse tenta descrever a maneira exata da distorção e redução deste deste entender. Todos os sintomas patológicos corporais - e os chamados psíquicos - são sempre privações, e podem ser compreendidos como reduções das possibilidades de entender uma coisa em toda a sua amplitude e riqueza de conteúdo.


A esquizofrenia é a doença mais humana e mais inumana, porque atinge essa essência do homem de poder se abrir e manter essa abertura para a entrada dos entes. Enquanto ficamos aqui, p.ex., estas árvores em nossa volta, existem para nós numa relação livre, que nos permite enxergá-las tematicamente ou deixá-las na periferia de nosso mundo. Por outro lado, o doente esquizofrênico perde exatamente esta capacidade de existir como abertura livre, na qual as coisas continuam em seus lugares.


Muitas esquizofrenias começam de tal modo que os doentes perdem a possibilidade de existir com essa liberdade e as coisas acabam se apoderando deles. Estas árvores, por exemplo, poderiam ganhar o poder de chamar o esquizofrênico a escalá-las ou de engoli- lo, de tal modo que ele se sentiria depois absorvido por elas ou até se sentiria árvore. Para o doente esta é a realidade.


Toda a patologia está baseada sobre um fundamento muito fraco, pois não está claro o que significa realidade. Um esquizofrênico dispõe ainda de algumas possibilidades de relacionamento chamadas normais. Quanto mais doente um homem é, mais reduzidas ou distorcidas se tornam estas possibilidades. Os débeis mentais percebem menos, percebem uma árvore, por exemplo, com sua riqueza de significações reduzidas, enquanto um esquizofrênico pode percebê-la como um gigante ou um deus.


Esquizofrenia significa dividido. Creio que este é um termo falso pois o esquizofrênico não é dividido, sempre a sua existência é completa e se realiza mesmo que numa relação patológica. Ele pode existir, por um momento, de uma maneira reduzida ou distorcida, e noutro momento de uma maneira mais ou menos normal , mas sempre existe com toda existência num modo de relação. Todos nós dispomos de muitas possibilidades de relacionamento, também da esquizofrênica. Não existe uma esquizofrenia em si mesmo. Antes temos de perguntar pelas solicitações que sobrecarregam a pessoa esquizofrênica.


Uma pessoa, que existe na maneira esquizofrênica, pode perder todos os sintomas esquizofrênicos se vive uma situação que não o sobrecarrega. Vi severos casos de esquizofrenia, com alucinações corporais paranoides, com os quais foi estabelecida uma elação como a do recém-nascido com sua mãe, e enquanto isto foi possível, desapareceram todos aqueles sintomas esquizofrênicos, que só ressurgiram quando se exigiu do paciente viver como adulto, entre outros adultos.


Todos os sintomas são motivados, inclusive os neuróticos e psicóticos. Uma criança com pais muito severos é motivada a ver as coisas só da maneira que seus pais permitem, e as outras possibilidades são excluídas. Mas há doenças onde uma pessoa nasce sem possibilidades. E quando as possibilidades faltam, não podem ser devolvidas de nenhuma maneira nem mesmo com os melhores pais.


O psicoterapeuta tem, em primeiro lugar, a tarefa de mostrar ao paciente que também há outros e mais livres modos de existir e, depois, de dar-lhe coragem de experimentar, aceitar e viver estes outros modos.


Um Caso de Histeria


A paciente M. Weber estava numa reunião e encontrou um rapaz que a inquietou e a atraiu de maneira vaga. Alguns dias depois, ela o reencontrou numa rua de sua cidade. Ele aproximou-se dela e, neste momento, ela caiu com as pernas paralisadas.


Segundo a teoria freudiana, a histeria é uma conversão de energia libidinosa no sistema nervoso, que pode produzir uma paralisia. A energia libidinosa é a energia do desejo inconsciente. No primeiro encontro, teria existido o desejo inconsciente de aproximar- se daquele homem, eroticamente, e esta moça foi educada no sentido de que isto é pecado, que então não devia acontecer.


Entretanto, não há prova nenhuma que em tal caso, na psique desta moça, havia um desejo inconsciente que se transformou no sistema nervoso. O caso que se pode ver é que a existência dela consistiu, ao mesmo tempo, em atração e repulsa àquele homem. Mas estes dois movimentos, estas duas diferentes e contraditórias reações a este homem não existiram, em primeiro lugar, na forma de um desejo inconsciente, porque um desejo inconsciente é, em si mesmo, uma contradição.


Freud mesmo escreveu que um saber inconsciente é de fato impossível. Para se tornar possível tal concepção teve de separar o homem em duas partes: uma inconsciente, e outra consciente. Na verdade, a existência desta moça realizou-se nos dois movimentos, nas duas reações opostas, que resultaram numa paralisia. E só pode ser paralisado alguém que esteja se movimentando numa determinada direção. Nunca se fala de uma pedra paralisada, nunca uma pedra lançada para no ar.


O principal é que não é preciso a concepção de um desejo inconsciente, mas que este sintoma histérico é um fenômeno direto da realização dessas reações opostas. Todo desejo precisa de certa liberdade do homem para perceber uma coisa como desejada. Esta moça, como histérica, não teve a liberdade de perceber aquele homem como desejado, mas repulsivo. Além disso, a existência desta moça foi reduzida ao corporal. A paralisia das pernas é o existir no modo do corpo.


Neste sintoma, temos que ver a paralisia não como alguma coisa que se transformou, que era primeiramente uma outra coisa, mas que o existir desta moça consistiu nos dois movimentos opostos. Estas duas reações não existiram primeiramente na forma de desejo, numa forma mental ou de pensamento, mas existiram, desde o início, neste fenômeno.


A concepção freudiana da conversão, como Freud mesmo disse, deixa tais fenômenos como enigmas. Não podemos falar de nosso corpo como uma coisa separada. Todos os fenômenos corporais patológicos só podem ser compreendidos sob a concepção da relação do entendimento com as coisas. Esta é a base de todos os fenômenos. Nossa existência consiste em uma ou outra relação com o que encontramos.


Dos Sonhos


O primeiro sonho que ouvi da paciente M. Weber, que sempre se sentia muito deprimida, é um sonho muito simples e se repetia sempre, desde a infância até o início da terapia. A moça se via encolhida num canto de um vagão de carga, situado no fundo de um oceano gelado, completamente vazio e sem nenhuma planta ou nenhum peixe. Ela sentia muito frio. Depois ela despertava. Neste sonho se mostra, de certa maneira, todo o estado desta existência.


Na teoria freudiana, o oceano significa o ventre materno. Entretanto, um objeto que aparece no sonho, quando existimos no modo onírico, aparece da mesma forma de quando estamos acordados. Temos de ver as coisas tal qual se mostram. Não temos nenhuma justificativa para que este oceano deva significar uma outra coisa.


Discuti este sonho com Jung e ele não pode explicar por que este oceano deveria significar outra coisa; disse simplesmente que o oceano significa, em última análise, o arquétipo do inconsciente coletivo. Também Freud não pode dar nenhuma justificativa para suas interpretações.


Se só temos as coisas que aparecem na clareira do mundo sonhado, temos que aproveitar simplesmente este oceano com o significado de um oceano e assim como aparece no sonho. É preciso esquecer-se de todas as outras interpretações - que chamo de complicações. É preciso ver de novo, e muito simplesmente. As chamadas associações livres como também as amplificações junguianas só nos afastam do conteúdo do sonho. É necessário que o oceano diga o que ele é e que digamos o que nós sentimos, o que vemos da sonhadora. É interessante notar que a sonhadora e nós vemos sempre a mesma coisa; só que um neurótico vê menos que um sadio, mas a essência da coisa, do oceano, é sempre a mesma. Neste caso, trata-se da visão estreita de uma neurótica.


A paciente disse que se sentia muito pesada, encoberta e perdida num vasto elemento estranho, e viu a falta de qualquer sinal de vida. A ausência de vida, solidão e depressão foi o que a sonhadora experimentou neste sonho e é o que também vemos.


Primeiramente, temos que ver por quais motivos esta existência se abriu para tais coisas. Se procuramos entender o estado desta existência, só poderemos dizer que, neste momento do sonho, ela consistiu na abertura para a entrada destas coisas e que estava fechada para a percepção e entrada de, por exemplo, o céu azul, o sol, as plantas, outras vidas.


E sempre que uma existência é assim fechada e não permite que suas possibilidades sejam livremente cumpridas está afinada na depressão. Ao contrário, se uma existência é aberta, é livre para realizar todas as suas possibilidades de relacionamento com as coisas está afinada na felicidade. Em si mesma, a afinação seja no afeto e na felicidade, seja na depressão, não é uma coisa psíquica separada, pois sempre toda a existência está afinada num determinado estado de ânimo, sendo a afinação uma das características fundamentais da nossa existência.


Foi suficiente mostrar a essa moça como sua existência, no momento desse sonho, estava afinada na depressão e na solidão e como estava fechada a entrada de todas as coisas vivas. Isto é tudo que se pode dizer deste sonho. Uma coisa é o modo de existir do paciente no estado de sonho e entender como ele está constituído neste momento, nesse caso como solidão e falta de vida, e outra coisa é a aplicação terapêutica deste entendimento no estado acordado. Neste estado, na sessão analítica, perguntamos à paciente se ela, quando acordada, é capaz de entender mais do que no sonho, onde ela percebeu somente que ficou sentada, num vagão de carga, no fundo de um oceano.


Não há justificativa para dizer-se que durante o sonho ela percebeu inconscientemente algo mais. A suposição de um saber inconsciente sempre conduz a um beco sem saída lógica. Esta suposição de que as coisas no sonho significam outra coisa, que está encoberta, sempre pressupõe uma segunda pessoa, que sabe que tem alguma coisa a esconder e como esconder e projetá-la.


Ao contrário, as coisas sonhadas significam nada mais do que aquilo que mostram. A situação da sonhadora durante o sonho mostrou-se somente a partir de coisas de fora dela: do oceano, da água, do vagão de carga. Não é por acaso que é exatamente um vagão de carga (que é uma coisa para transportar mercadorias ou gado que estão a caminho, mas que ainda não chegaram ao seu lugar de destino). A sonhadora se percebeu como uma coisa neste vagão. Esta solidão, este estado de objeto, ela só percebeu a partir das coisas fora de si mesma. Pode-se dizer que, durante o sonho, ela ainda está “meio cega”. Entretanto, quando acordada, podemos perguntar se este vazio, esta falta de vida teria algo de sua própria existência e não somente do oceano, dos objetos fora dela. Ela pode perceber que a sua própria existência é semelhantemente vazia e que a significação das coisas fora dela mesma, no sonho, era análoga ao que, acordada, podia entender de si própria, de sua existência.


Neste sonho, a moça percebeu a solidão somente de sua situação de vida no vagão, não percebeu que ela estava existencialmente na solidão, sem qualquer relação com a vida e outras pessoas. Foi só depois da minha pergunta se agora, acordada, poderia perceber mais, no sentido de poder experimentar e sentir esta solidão como situação de toda sua existência que a sonhadora se deu conta da profundeza de sua solidão.


Estes são os princípios para a compreensão dos sonhos e, em primeiro lugar, nós e o paciente temos de perguntar-nos para quais coisas a existência dele, no sonho, se mostrou aberta. Sabendo disso, já conhecemos o estado dessa existência, pois a existência humana consiste na abertura para o entendimento de alguma coisa. Depois precisamos ver qual é a aparência dessas coisas, como é a relação do sonhador com elas. Essa relação pode ser de felicidade, quando aproxima uma coisa, um amigo, um animal, ou de angústia, de medo, de repulsa, de náusea. Esses princípios sempre são necessários para entendermos a existência sonhada: o que aparece no âmbito de abertura e qual a sua relação com o sonhador. Se entendermos esses princípios, não precisaremos fazer nada mais para o entendimento do sonho.


Na aproximação terapêutica, perguntamos ao paciente se depois, quando acordado, ele é capaz de ver com maior clareza do que no estado de sonho, pois a existência no estado acordado é mais aberta para entender as significações vistas no sonho. E nada mais temos que fazer como, por exemplo, interpretar o sonho no sentido objetivo e subjetivo. Tais interpretações pressupõem sempre que alguém enigmático ou mágico no sonho já saiba que, por exemplo, o oceano representa o útero materno ou o arquétipo coletivo. Ninguém sabe estas coisas enquanto sonha. Não precisamos de nenhuma suposição, transformação ou encobrimento, nenhum sensor mágico.


É, muitas vezes, neste caminho através do sonho, que algo se mostra pela primeira vez, mas se mostra ao sonhador somente a partir das coisas externas, fora dele mesmo. A pessoa acordada precisa senti-las, como uma situação existencial de si mesma. Pois no sonho percebemos quase que unicamente presenças sensoriais, enquanto no estado acordado percebemos, além destas, presenças futuras, passadas, longínquas. Neste sentido, a vida acordada é muito mais rica. Esta é a diferença, em geral, entre o sonho e a vida acordada.


Interpretei dezenas de sonhos à maneira freudiana antes de entender a existência humana através da Análise do Dasein. A diferença para os pacientes foi enorme. sempre tive muita dificuldade para crer na interpretação freudiana, e meus pacientes também não a entendiam; era preciso um grande esforço de persuasão, de minha parte, para que eles acreditassem nessas interpretações. E o mais espantoso foi que os meus pacientes se sentiam compreendidos sempre que eu repetia o que experimentaram no sonho.


Para mim também se tornou fácil perguntar-lhes se, na vida acordada, podiam ver mais claro e ampliado o que tinha se mostrado no sonho. É verdade que não interpretando e não dizendo que alguma coisa significava uma outra mas, simplesmente entendendo a situação do sonho, o paciente se sente acompanhado e com maior liberdade em relação à sua existência.


Tenho uma pequena coleção de sonhos de recrutas. Um deles, muito simples, mostrava um rapaz sentado num banco, com o seu primeiro amor, de mãos dadas e nada mais. Ele sentia-se muito feliz nesta situação. Para o entendimento deste sonho é importante dizer que esta moça tinha sido sua namorada há dois anos e que, na época do sonho, na vida acordada não pensava mais nela. Tinha se esquecido dela completamente, mas agora teve este sonho. Ele era um jovem do interior da Suíça, onde as regras morais são bastante rígidas. Chamaria atenção se ocorresse com um rapaz de 20 anos, da cidade, que a conversa e a proximidade de uma moça chegassem apenas a um dar-se às mãos, sem ir além disso, por exemplo, irem para a cama, o que não seria extraordinário. Contudo este sonho mostra que, nesse momento, esse moço estava aberto para uma relação amorosa com uma moça somente até certo ponto. O fato de ele se sentir feliz neste sonho indicou que, nessa situação, se cumpriram suas possibilidades de relacionamento. E basta. Qualquer outra interpretação penso que seria errada e não justificada.


Outro recruta sonhou que tinha comprado uma nova motocicleta Honda, muito forte, e, quando a levou para sua casa, sua mãe com raiva de sua compra cara mandou-o para o diabo com sua máquina. O moço, então, saiu pelo mundo afora, onde, longe de sua mãe, logo encontrou uma moça por quem se apaixonou. Ela estava entusiasmada com sua motocicleta. Depois o rapaz voltou para casa com sua namorada e sua Honda. E chegando lá, ele e sua mãe se abraçaram. Aqui ele se virou e viu que a moça e a motocicleta tinham desaparecido, restando somente uma velha e fraca BMW. O recruta acabou seu relato com a observação: “Foi um sonho cômico”. Querendo entender este sonho, nós e o rapaz perguntamos: O que é Honda? Ele nos disse que é uma máquina muito forte, capaz de lançá-lo rapidamente com pouco esforço no mundo, fora da casa materna.


Não podemos atribuir, como fazem os psicólogos, um conteúdo simbólico, um significado a algo que não o possui desde o início. No sonho da Honda, o moço compra aquele meio para sair da casa materna contra o desejo da mãe que, como muitos casos, fica furiosa e não quer deixar o filho. Mas é interessante notar que este moço tem a coragem de comprar essa motocicleta e deixar sua mãe.


Se ele fosse um paciente, a primeira coisa a fazer seria repetir- lhe que há muita coragem da sua parte para adquirir essa Honda e para entrar no mundo, sair da casa materna. Entretanto, uma vez liberado da mãe, ele tem a possibilidade de apaixonar-se por outra mulher, de estar aberto para um relacionamento com outro ser feminino, da sua idade, também entusiasmado pela sua Honda, essa força explosiva.


Interessante é esse movimento de separar-se da mãe e achar o mundo próprio. Até aí tudo bem, mas sua coragem , sua liberdade não duram muito, pois logo volta para a casa materna. E, no momento em que fica de novo com a mãe, a Honda forte e a moça desaparecem, e sua existência se fecha novamente. Nesse sonho, este moço vê uma força maior somente de fora de si mesmo e nada mais. Poderíamos perguntar-lhe se ele, acordado, sente-se muito mais forte como homem com a tendência de sair de casa.


Os sonhos seguintes são de pacientes meus. O primeiro é de um doente muito depressivo, de trinta e três anos, que sonhou ser um tapete muito chato, de apenas duas dimensões, no soalho. Sobre ele as pessoas pisavam, ele as via, mas não sentia nada, nem dores. De repente, ele passou a ter outra dimensão, existindo, agora, como um tapete tridimensional, com uma espessura de cinco centímetros, e sentindo-se machucado com os pisões das pessoas.


Isto tudo que aconteceu no sonho, naturalmente, não era próprio de um verdadeiro tapete, pois um tapete nunca vê ninguém passando sobre si. Também no sonho ele existia de maneira humana. No modo de ser tapete, experimentou ser achatado, sem nenhum sentimento, sem possibilidade de sentir dores, até acrescentar uma terceira dimensão. Percebeu a si mesmo, primeiramente, como um tapete bidimensional e, depois, tridimensional. Podemos perguntar ao paciente se no estado acordado ele se experimenta achatado, prensado, no sentido não só físico, de um tapete, mas de sua existência total. Depois ele contou muitas experiências posteriores à sua primeira infância, de como seus pais o pressionavam, impedindo- o de tornar-se um homem maduro.


Nosso paciente teve aquele sonho dois anos depois de começar a Daseinsanalyse, quando já lhe era possível adicionar uma terceira dimensão ao tapete e sentir dores com os passos dos outros sobre si. Podemos perguntar-lhe agora, acordado, se ele pode sentir alguma coisa quando acordado. Antes era um homem sem nenhum sentimento, absolutamente frio, dispondo unicamente de uma grande inteligência e de relações intelectuais com as coisas. Nada podia se aproximar dele numa relação afetiva. Só naquela época da Daseinsanalyse é que as coisas puderam chegar mais perto dele.


Este é um exemplo de como as significações importantes, no sonho, se mostram da parte das coisas exteriores, pois as relações existenciais, não sendo objetos ou matérias, e não sendo perceptíveis sensorialmente, não podem aparecer no sonho. As relações existenciais nas quais nosso paciente existia só foram percebidas a partir da significação do tapete. Neste caso, ele mesmo era o tapete.


Tive outros casos de sonhos onde o doente só via o tapete e apenas o percebia como um objeto que as pessoas passam por cima, que é pisado e estragado pelos passos. Sobre tal sonho pode-se perguntar ao sonhador, já acordado, se entende que sua existência tem algo em comum com o tapete estragado e pisado no soalho.


A respeito do sonho como uma forma prospectiva em relação ao sonhador:


Como já dissemos, no sonho a pessoa é mais fechada que no estado acordado e não pode ver as significações, no sentido mais amplo, em relação a si mesma. Todavia é possível que, no estado de sonho, a existência esteja mais aberta para a entrada de coisas significativas que não foram ainda percebidas pela pessoa acordada. E também em um sonho “prospectivo” as significações só aparecem a partir das coisas materiais. Mas não é apenas isso que o sonhador percebe, pois é só depois, quando acordado, que ele pode dizer se o que sonhou foi prospectivo em relação a ele mesmo. Isto é sempre um julgamento posterior do acordado. Mas não podemos dizer que o que aconteceu depois, no estado acordado do sonhador já tinha, no sonho, como significação existencial.


"Recordo-me de um sonho em que o sonhador se viu sentado sobre um aquecedor, sentindo um forte calor no traseiro. Disse que foi muito doloroso e que se queimou bastante. Dois dias depois, sofreu uma inflamação da bexiga e teve muitas dores quando urinava. Talvez já tivesse percebido, no sonho, algo da inflamação nesta parte do corpo, mas, como sonhador, somente podia perceber o queimar a partir de uma coisa exterior. Não podemos dizer que alguém dentro do sonhador percebia a inflamação da bexiga e, depois, camuflando, a escondia no aquecedor. Só a pessoa acordada pode dizer que este sonho, neste sentido, foi prognóstico e que, sonhando, percebeu mais que no estado acordado".


Naquele caso da moça que sonhou estar num oceano, solitária, se, depois daquele seu primeiro sonho, tivesse sonhado com outro oceano cheio de plantas e animais, não poderíamos dizer que tivesse havido uma antecipação no sonho, pois a sua existência estaria realmente mais aberta para a entrada de vida, de novas relações. Poderíamos perguntar-lhe se, no estado acordado, já percebia outras relações. No estado acordado, ela teria percebido que algo teria mudado.


Na Academia Americana de Psicanálise, houve um seminário que durou cinco anos. O trabalho consistia em cinco analistas, um de cada vez, darem suas interpretações para o mesmo sonho. Mas chegavam sempre à conclusão de que não poderiam se entender, e que suas interpretações eram contraditórias. Finalizaram dizendo que algo muito importante devia estar errado com a interpretação dos sonhos.


Toda a teoria onírica de Jung foi resumida no seu artigo “Essência os sonhos”. Aí está relatado que um paciente sonhou que estava numa caverna subterrânea onde havia um vaso de ouro e uma serpente vigiando-o, não deixando que ele se aproximasse. Nas associações livres, o sonhador disse que viu uma vez, na infância, uma serpente no jardim zoológico e que também se lembrava de alguns contos de fada, Jung disse que nada se podia fazer com estas associações e que para entender este sonho precisava das amplificações e lendas que mostram que a serpente é um arquétipo do inconsciente coletivo, e que a caverna é a situação geral do homem, e nada mais.


Para Jung, este sentido geral, esta significação objetiva vale para todos os homens. Desse modo, o sonho foi destituído de sua importância pessoal. Teríamos que perguntar o que são, no sonho concreto, esta serpente e este vaso – que dizem a nós e ao sonhador Uma serpente é um fenômeno de vida instintiva, muito perto da terra, de sangue frio e muito estranha. É um modo de viver em relação ao qual o sonhador tem medo.


Sobre o que é um vaso, Heidegger tem um artigo magnífico, que diz que sua essência é o vazio. O vaso se apresenta ao homem para receber ou derramar alguma coisa: vinho, água ou água benta etc. Uma vez entendida a essência das coisas concretas do sonho, podemos perguntar ao sonhador se aquilo que percebe, nestas coisas fora dele, também pertence à sua própria existência – o modo de viver como uma serpente e o modo de ser de um vaso –, pois a existência humana também é, num certo sentido, um vaso, uma abertura. Perguntaríamos também, ao sonhador se ele ainda está distante do modo de ser do vaso, cuja natureza é servir, no sentido existencial; o que haveria, no seu mundo, da maneira de existir como serpente, como criatura rastejante e instintiva; se ele teria medo de ver e aceitar modos análogos de existir.


Tudo o que foi dito até agora é experimentado no fundo da própria existência. Todas estas coisas não podem ser apreendidas como autônomas, mas devem ser experimentadas como sendo a própria existência. Habitualmente, ninguém realiza a própria falta de liberdade nas relações com o mundo. Tomamos nossas relações como evidentes, como naturais. Há uma tendência geral, na existência humana, de afastar-se dos próprios problemas críticos. Por isso mesmo, Freud já dizia que a autoanálise não vale muito para a formação psicoterapêutica.


A partir da Análise do Dasein, podemos compreender muito bem a psicoterapia de grupo. Não tenho muita experiência própria, mas sei que essa forma de terapia é , de fato, necessária, pois não há tantos terapeutas para fazer tantas análises individuais. Em alguns casos, pode ser até mais favorável, no início, que a análise individual, pois é uma certa ajuda para abrir a pessoa. Mas creio que, para a formação do psicoterapeuta, é preciso ainda a análise individual que em geral atinge mais profundamente, alcançando maiores mudanças na pessoa.


Sempre disse que Freud, no fundo, era um terapeuta daseinsanalista, assim como os antipsiquiatras também o são. Mas todos eles ainda continuam subjetivos, trabalhando sempre com o conceito de uma psique primeiramente separada do mundo, e não fazem o importante e já mencionado salto do entendimento, de abrir- se. Até a maneira de classificar, rotular, e explicar e de pôr um avental branco do psiquiatra é método de distanciamento, de autodefesa.


Há nisto uma certa razão, pois é muito perigoso entrar no mundo psicótico. Sempre digo a meus alunos que aceitem apenas um caso psicótico por vez, pois é demais existir concomitantemente com mais de um psicótico. Com os psicóticos não podemos nos relacionar em nível intelectual, sempre é preciso encontrar o doente no nível em que ele está, que até pode ser o de uma criança de um ou dois anos.


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